A lavratura de Atos notariais exige a capacidade das partes envolvidas no ato. Não se admite por exemplo que quem não possa manifestar sua vontade, inclusive por estar perdido no tempo e no espaço possa dispor dos seus bens, outorgar procurações etc. Nesse contexto, sempre se negou a realização de atos notariais por pessoas portadoras de determinadas doenças ainda que, porventura, essas pessoas pudessem a seu modo e com alguma dificuldade exprimir sua vontade, como pode acontecer por exemplo nos estágios iniciais do Mal de Alzheimer e do Mal de Parkinson.
Enquanto cartorário, recordo-me muito bem, a orientação era a de recusar, “por cautela”, a lavratura de atos notariais para aqueles dos quais tivéssemos a informação de que estavam acometidos por MAL DE ALZHEIMER ou MAL DE PARKINSON – e tudo isso sem mesmo entrevistar as pessoas para de fato tentar aferir sua incapacidade. Me parece lógico o argumento de que “não somos médicos” (para atestar o grau de comprometimento e avanço da doença) porém sempre pensei que a questão não podia se resumir a isso, pela sua impotância…
Segundo informações oficiais do Governo (https://bvsms.saude.gov.br/doenca-de-alzheimer-3/) temos que a DOENÇA DE ALZHEIMER “é a forma mais comum de demência neurodegenerativa em pessoas de idade. A causa é desconhecida, mas acredita-se que seja geneticamente determinada”. Apresenta como sintomas, por exemplo “falta de memória para acontecimentos recentes; repetição da mesma pergunta várias vezes; dificuldade para acompanhar conversações ou pensamentos complexos; irritabilidade, desconfiança injustificada, agressividade, passividade, interpretações erradas de estímulos visuais ou auditivos, tendência ao isolamento” e costuma evoluir de forma lenta, com quadro clínico dividido em quatro estágios progressivos, sendo uma doença até hoje INCURÁVEL.
Por sua vez com base na mesma fonte (https://bvsms.saude.gov.br/doenca-de-parkinson/) podemos considerar DOENÇA DE PARKINSON como “uma doença neurológica que afeta os movimentos da pessoa. Causa tremores, lentidão de movimentos, rigidez muscular, desequilíbrio, além de alterações na fala e na escrita”. Como sintomas essa enfermidade pode consistir em “aumento gradual dos tremores, maior lentidão de movimentos, caminhar arrastando os pés, postura inclinada para frente. O tremor afeta os dedos ou as mãos, mas pode também afetar o queixo, a cabeça ou os pés” sendo uma doença de progressão variável e desigual entre os pacientes e ainda hoje INCURÁVEL.
Fato é que em 2015 a Lei Federal 13.146 promoveu drástica mudança nos conceitos de incapacidade cravados no CÓDIGO CIVIL de 2002. A referida Lei – também conhecida como ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA – promove a INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA e em seu artigo 2º define com clareza serem pessoas com deficiência todas aquelas que têm “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Como defluência lógica e natural do objetivo da Lei temos, conforme seu artigo 4º estatuído que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação” – sendo considerada DISCRIMINAÇÃO em razão da deficiência, conforme par. 1º do referido artigo – “toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”.
O Código Civil, desde a referida Lei, portanto, passa a considerar como absolutamente incapazes para os atos da vida civil apenas os menores de 16 (dezesseis) anos e incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de exercê-los, por exemplo, “aqueles que por causa transitória ou permanente não puderem exprimir sua vontade”. No contexto do Cartório de Notas, portanto, efetivamente a inclusão deve ser promovida e já não se deve recusar a lavratura de atos notariais para quem esteja acometido seja por Mal de Parkinson, seja por Mal de Alzheimer ou ainda qualquer outra deficiência de natureza mental desde que seja possível aferir sua manifestação/expressão da sua vontade – SENDO PORTADOR OU NÃO DE INCAPACIDADE DE QUALQUER NATUREZA.
A doutrina especializada de KÜMPEL e FERRARI (Tratado Notarial e Registral. 2022) esclarece com o costumeiro acerto:
“O eixo do sistema de capacidade de fato ou de exercício da pessoa natural é a COGNOSCIBILIDADE e a AUTODETERMINAÇÃO, de forma que plenamente capaz para os atos da vida civil aquele que compreende a realidade da vida e se autodetermina. Portanto, tem pleno poder de gerenciar sua vida, seus negócios e seus bens. O DISCERNIMENTO está na base desse instituto. (…) Estando a vontade juridicamente apreciável na base dessa sistemática protetiva, é claro que o PAREAMENTO DE CONDIÇÕES para a atuação social precisa ser estimulado por esses institutos. A vulnerabilidade do indivíduo não pode nunca ser desconsiderada pelo ordenamento. Porém, a Lei 13.146/2015, ao modificar os artigos 3º e 4º do Código Civil, desguarneceu justamente aquele que não tem nenhum poder de autodeterminação. (…) De toda sorte, deverão ser protegidos aqueles que têm deficiência mental, os que estão em situação de coma, os que estão em grau avançado de Alzheimer, e outros tantos transtornos neurocognitivos. Aliás, todos eles estão no mesmo rol dos maiores de 16 e menores de 18 anos. A relevância volitiva destes sobrepõem-se à daqueles que os assistem. Levada a pessoa em coma à qualidade de RELATIVAMENTE INCAPAZ, o negócio praticado por ela passa a ser meramente anuável, se não provada a simulação. Não há mais a tutela do art. 166, inc. I, que nulificava os negócios jurídicos nessa circunstância, de forma que a atenção dos tabeliães deve ser REDOBRADA”.
Especificamente no Rio de Janeiro há expresso comando da CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA para que os Cartórios não exijam ATESTADO MÉDICO dos outorgantes para o caso de ATOS NOTARIAIS (vide Processo ADM CGJ/RJ 2007-115496) sendo do referido processo extrair a lição de que,
“(…) NÃO HÁ DÚVIDA DE QUE É DISCRIMINAÇÃO O QUE FAZ O NOTÁRIO, QUANDO SE RECUSA A LAVRAR UMA PROCURAÇÃO, EM QUE DEVA CONSTAR COMO OUTORGANTE PESSOA IDOSA, EXIGINDO DELA UM ATESTADO DE SANIDADE MENTAL, SE A LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA NADA MENCIONA A ESSE RESPEITO”.
A responsabilização do Notário me parece muito clara haja vista a nítida discriminação, como esclareceu no referido Parecer da lavra do douto Juiz Auxiliar da CGJ/RJ na ocasião – sendo importante lembrar que na época (2007) ainda nem tínhamos o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei promulgada apenas em 2015).
O atual Código de Normas Extrajudiciais do Rio de Janeiro (Provimento CGJ/RJ 87/2022) em seu artigo 447 autoriza expressamente a lavratura do INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL com pessoas incapazes (como inclusive já comentamos aqui, antes da alteração promovida pelo Provimento CGJ/RJ 6/2023 sobre o qual voltaremos a tratar em breve) e também inova ao permitir (art. 405) que seja realizada através de ATA NOTARIAL a nomeação de CURADOR ou APOIADORES – tudo isso em louváveis medidas que promovem a inclusão das pessoas com deficiência, com toda certeza sinalizando que TODO ATO NOTARIAL (e não só Inventários Extrajudiciais) possam ser realizados também por quem seja portador de Mal de Alzheimer, Mal de Parkinson ou qualquer outra delibilidade mental sem que essa condição por si só, represente incapacidade de manifestação/expressão da vontade – essa sim, que deverá ser apurada pelo Tabelião ou seus prepostos – como já demonstrou inclusive o STJ:
“STJ. REsp: 1694984/MS. J. em: 14/11/2017. RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. (…). ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. LEI N. 13.146/2015. DISSOCIAÇÃO ENTRE TRANSTORNO MENTAL E INCAPACIDADE. (…). 8. Nos termos do novel Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146 de 2015, pessoa com deficiência é a que possui impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial (art. 2º), não devendo ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa (conforme os arts. 6º e 84). 9. A partir do novo regramento, observa-se uma dissociação necessária e absoluta entre o transtorno mental e o reconhecimento da incapacidade, ou seja, a definição automática de que a pessoa portadora de debilidade mental, de qualquer natureza, implicaria na constatação da limitação de sua capacidade civil deixou de existir. 10. Recurso especial a que se nega provimento”.
Original de Julio Martins